me fale de suas cicatrizes: quanto pesa?

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desde sempre tive fascinação por cicatrizes, não sei se fascinação é a palavra certa, mas quando vejo alguém com uma bela cicatriz exposta meu corpo não se aguenta. quer perguntar o motivo, se doeu, se faz tempo, se ainda machuca. essa é sempre a última pergunta, vou vendo o rosto desenvolver expressões. tem gente que começa rindo, acha engraçado minha curiosidade, diz que nunca viu alguém assim, mas aí a memória vai trazendo tudo de volta, uma história ganha corpo, e essa é a melhor parte. eu vejo os olhos carregarem, o semblante muda, tem relato feliz de um copo americano que caiu no pé no meio da bebedeira de sexta-feira com os amigos, tem as garrinhas do gato, que vive com a família há anos, no braço, na perna, no rosto. mas tem história que ganha outro corpo, que vai tirando o sorriso pouco a pouco do rosto, vai enchendo os olhos de um sentimento que eu nunca sei decifrar. nunca sei dizer se é fruto de uma dor física que ainda existe ou de uma coisa muito mais profunda, mais íntima, mais doída, daquele dorzinha fina, que vai na alma.

quando a história vai sendo contada eu sempre tento focar o máximo, estou ali para ouvir, sanar minha curiosidade, afinal, eu que comecei com essas perguntas absurdas. mas é difícil sustentar. de um jeito ou de outro, por mais que eu me controle, também percorro meu corpo, minha memória atrás das minhas cicatrizes. que são muitas, felizes, cômicas, que marcaram a pele. estaciono nas que machucaram fundo, que ultrapassaram os três pontos do queixo ou a queimadura na perna. essas viram quase nada, doeram, esperneei quando vi meu corpo aberto, ferido, porém são diferentes das cicatrizes não expostas, daquelas que estão cravadas sabe-se lá aonde, mas que sempre voltam, sempre dão sinal de que estão ali. 

minhas fraturas internas estão protegidas do mundo, dos olhares críticos e dos piedosos, estão longe de paramédicos, de consolos, inalcançáveis até mesmo para mim. só sei que um dia elas já doeram muito, mas que nenhum andar de relógio será suficiente para tirá-las de mim. é nesse ponto, que, ainda ouvindo qualquer uma das histórias que encontro por aí, descubro que minhas cicatrizes e sequelas para sempre serão minhas, para sempre estarão aqui. nós nos confundimos, o olhar distante e irrigado, as noites mal dormidas, os medos não palpáveis, criados ali, sem fundamento, são os vestígios desses pequenos e grandes acidentes que a gente se envolve durante a vida. 

mas quanto pesa uma cicatriz? quando pesa uma dor que ninguém enxerga? um desconforto que ninguém entende? são uma, duas, três mil inseguranças que ninguém sabe explicar de onde vem, mas quem saberia? se nem eu, ou você, que traz consigo a memória e a agonia consegue compreender, imagine... a gente não consegue por fim, não dá para por a mão e retirar, não dá para curar com beijinho como nossa mãe fazia antes. ela está ali, uma sequela latente, com o sangue vermelho denso, viva, e vez ou outra tentando ser protegida, escondida, sendo evitada de ser tocada, trazida à tona, remexida. mas é impossível, nós existimos e agora cada uma delas é real e faz parte de nossa existência. 

e ser, verbo que às vezes mais pesa do que pondera, fica mais leve quando duas pessoas, e suas cicatrizes, se encontram e se reconhecem uma na outra. sabendo que, apesar de não precisar ver corte algum, ali dentro daquele corpo muitas colisões já aconteceram e acontecerão, por fim, entendem que nunca poderão julgar um a dor do outro, o desconforto, a solidão de andar junto e mesmo assim se sentir só. acho que é daí que vem aquela lição de não julgar o próximo, a gente nunca sabe o que se passa naquela profundeza, que por mais que aponte superficialidade, algum dia já foi escavado com unhas ferozes e pontiagudas, machucando, maltratando, deixando marca. a gente nunca sabe do outro. é nesse ponto que eu queria chegar. vou seguir com alucinação por cicatrizes, por marcas na pele, e mais ainda, por aquelas que estão guardadinhas, mas que são reveladas no olhar perdido e na procura por um abraço apertado. 


"todo o mundo é parecido quando sente dor", Barão Vermelho (O poeta está vivo)


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